quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Artigo Rosacruz: Quando três constituem apenas um (Parte 1)

por MICHEL AUZAS-MILLE, FRC

Tentaremos, neste artigo, esclarecer certos aspectos do simbolismo extremamente rico do número três e de sua relação com a Unidade fundamental da qual conservamos a quase totalidade dos ensinamentos tradicionais. Veremos também como este conceito permeia nossa realidade cotidiana.
 
Meditando sobre o simbolismo das imagens do Tarô de Marselha e principalmente sobre o terceiro arcano maior – “a Imperatriz” – e, portanto, sobre o número Três, tomamos consciência de forma concreta de uma ligação que une o espírito, a alma e o corpo, de tal modo que os três constituem apenas UM, e assim conseguimos distinguir, com toda a lógica, as três funções marcantes que animam o Ser humano durante o período de sua encarnação. São três funções, três centros “emissores- receptores” de indubitável importância, pois se trata da cabeça, do coração e do ventre, esse último incluindo o baixoventre. Podemos, então, deixar bem claro que simbolicamente estes centros representam: o espírito, pela cabeça – “centro celeste” ou centro espiritual –; a alma, pelo coração – “centro do Homem” ou centro emocional –; e a natureza, pelo ventre e pelo baixo-ventre – “centro terreno” ou centro vital.


Essa tripartição é corroborada por K.G. Dürckheim em seu estudo O Hara, Centro do Homem: “A posição do homem entre o céu e a terra corresponde à da alma entre o espírito e a natureza – disposição que se reflete também no simbolismo do corpo dentro do qual o coração está situado entre a cabeça e o baixoventre”.¹ Isso depois de ter chamado a atenção em sua outra obra, A Abertura do Ser² para o fato de que: “O Homem, criatura entre o céu e a terra, é primeiro o filho da Terra, ou seja, da Grande Natureza, que, antes e durante a elevação da consciência, lhe dá vida, o conduz e o renova. A força fiel da Terra alimenta permanentemente sua existência”.
 
Sem querer entrar em detalhes que nos desviariam de nosso objetivo, na Cabala hebraica tradicional – e principalmente em seu símbolo central, na “Árvore das Sephiroth” (vide figura ao lado) – encontramos novamente este esquema de três planos (vide também pág. 34), ao mesmo tempo distintos e complementares, caracterizando os princípios da criação e da evolução, descritos com as palavras e conceitos bem característicos daquela cultura, ou seja:

– Atsiluth, ou mundo da Emanação, plano do vir-a-ser ou da revelação, símbolo do espírito, “centro celeste”, tendo como ponto culminante Kether, a Coroa. Atsiluth representa aqui as funções da cabeça do Homem – ao mesmo tempo símbolo e objeto físico.

– Br’iah, ou mundo da Criação, plano da encarnação, do Ser, símbolo do Homem, com seus dois pólos principais: um, visível, Tiphereth – a Beleza – e o outro, invisível ou sugerido, Da’ath – o Conhecimento. Esses dois pólos de Bri’ah são as funções principais do coração do Homem e de sua respiração, enquanto órgãos e também enquanto símbolos.

– Yetsirah, ou mundo da Formação, e Asiah, ou mundo da Ação – ambos no plano do Ter, símbolo da natureza, “centro terreno”, com seus dois aspectos: Yesod, a Fundação (que podemos relacionar com a libido, segundo definição proposta por Jung); e Malkuth, o Reino, nosso corpo físico, como o nosso planeta Terra. Yetsirah e Asiah designam o funcionamento do ventre do Homem associado ao do baixo-ventre, tanto no plano simbólico quanto no nível fisiológico.



Levando um pouco mais longe essa distinção em três planos da realidade humana, podemos perceber que, dentro da própria estrutura de nosso encéfalo, encontram-se essas três zonas de influência resultantes da evolução, a saber³: o “cérebro neomamífero” – chamado de “isocórtex”, com o comportamento “humano” a ele associado – corresponde ao domínio do espírito, a cabeça –; o “cérebro paleomamífero”, ou “sistema límbico”, a origem do comportamento “animal-social” e naturalmente associado especificamente ao coração e, de modo geral, ao peito, os dois simbolizando a “respiração”; e, finalmente, o “cérebro reptiliano”, chamado de “complexo reptiliano” que é o representante antediluviano do “animal” no Homem, de onde vêm certas características de comportamento ligadas ao reino do instinto bruto. Veremos mais adiante que esta tripartição precisa ser tomada com muitíssima prudência nunca nos esquecendo de que os “três constituem apenas UM”.

 

Um princípio alquímico tradicional, transmitido por Huginus a Barma, no século XVII, nos convida a “extrair da unidade o número ternário e a reduzir o ternário à unidade”. Por uma ótica de pesquisa da “realidade humana”, podemos imediatamente aproveitar a oportunidade para fazer uma proposição como esta. De fato, o Ser humano é UNO (e indivisível). Mas, para poder abordá-lo em toda a sua globalidade e em toda a sua complexidade, convém que sejam ressaltados dessa Unidade os principais “pólos” atores e suas respectivas áreas de influência a fim de esclarecer suas “relações” e suas interações para, no final, fazê-la emergir e, assim, poder apropriar-se da Unidade fundamental e compreendê-la.


Aqueles que chamamos de “Antigos” – no sentido tradicional da expressão e não segundo os tradicionalistas atuais – conheciam muito bem esses três planos principais que geram a totalidade – a unidade – do Ser humano. Mas esta particularidade desenvolvida e expressa no nível simbólico pelos sábios, filósofos, guias e mestres de outras épocas, não diz respeito apenas – longe disso – à abordagem “filosófica” da condição humana. Saint Yves d’Alveydre nos destaca, em total concordância com essa sabedoria ancestral: “À cabeça – ao espírito – estão ligados os símbolos e funções de ‘autoridade’; ao coração e ao peito – à alma, à respiração – são atribuídos os símbolos e funções da ‘vida social’; e ao ventre e ao baixo-ventre – à natureza – estão ligados os símbolos e funções da ‘vida econômica’”.




Isso nos permite ver que a organização “arquetípica” da vida em sociedade, do “viver junto”, corresponde ponto a ponto à organização do Ser humano individual, em todos os planos: físico, psicológico, intelectual, emocional e até mesmo no espiritual. A conclusão disso é que “o que está em cima” é como “o que está embaixo”. O mesmo esquema, com dois níveis diferentes, estrutura tanto o macrocosmo (o grupo, a coletividade, a sociedade) quanto o microcosmo (o indivíduo). Evidentemente, vamos também encontrar o mesmo esquema constituído de três ordens em Georges Dumézil – em sua obra Jupiter, Mars, Quirinus – quando, abordando o pensamento de Platão, ele nos diz: “Depois de ter descoberto a fórmula tripartida da sociedade, Platão volta-se para o indivíduo, para o ‘UM humano’, e neste microcosmo, encontra os mesmos elementos dentro da mesma hierarquia, as mesmas condições de harmonia comandando as mesmas virtudes. Do ponto de vista da Justiça, o homem justo em nada difere do Estado justo. Ele tem em si o equivalente dos sábios, dos guerreiros, dos homens de dinheiro; estes são os princípios do conhecimento, da paixão, do apetite. Que ele os subordine de modo que o segundo só possa ajudar o primeiro, de modo também que os dois primeiros dominem juntos esse temível terceiro (que é, em todo homem, a parte mais considerável da alma e que é, por natureza, insaciável de riqueza); que ele abra para a sabedoria, para a coragem, para a temperança, os ‘ares espirituais’ que lhe convêm: é assim que deve Ser”4

É, bem entendido, com uma pitada de humor, com uma ponta de ironia que daremos a esta citação uma atenção toda especial. De fato, no nosso projeto social atual, em fase de globalização, ela destaca de fato de forma dramática a distância incomensurável que separa nossas sociedades totalmente voltadas para o consumo desenfreado, pela mercantilização dos bens e das pessoas, pelo apetite insaciável por riquezas (sem falar aqui da “adoração imoderada” do umbigo) – isto é, todos os “valores” do “ventre” e do “baixo-ventre” – de uma sociedade “ideal” sonhada por Platão, em que o coração e a respiração se aliam perfeitamente à razão para vencer, dominar e, talvez, transcender juntos “esse temível terceiro” que nos puxa para baixo…



O artigo continua...

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