quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Quando três constituem apenas um (Parte 2)


continuação da primeira parte...

Fazemos nossas as palavras de Rabelais quando este nos diz: “O Homem tem três centros: o cérebro, o coração e o ventre, mas privilegia este último que o leva à perdição. Pois, se o ventre é a sede da maternidade, o intestino é também o verme que nos devora e que nos leva à sepultura”. Sem irmos tão longe, temos que admitir que, sem coração, o cérebro certamente não suportaria o ventre e o ventre não suportaria o cérebro. É fato certo que os órgãos e funções do ventre e do baixo-ventre são um desafio para a razão, para o intelecto, se não forem “enobrecidos” e também “justificados” pela mediação do coração. Na alquimia, o que concilia os dois extremos – a respiração e o mercúrio, o Sol e a Lua, o espiritual e o material (corporal-sensorial) – é o Sal (scel), para que os três se tornem UM. 

 
Historicamente, podemos considerar que é a partir de um grande cisma entre a Igreja do Oriente e a do Ocidente (no ano de 1054), que a Igreja de Roma, conquistando sua independência política e religiosa, acabou – com o espírito religioso ocidental se “racionalizando” cada vez mais – por perder pouco a pouco a compreensão do conceito grego de “Ser humano”. Dentro de uma inquietude de autonomia e de afirmação de seu individualismo, ela veio a traduzir os Textos canônicos para o latim. Mas, se, por um lado, a língua grega exprimia perfeitamente a arquitetura ternária do Homem – espírito, alma e corpo –, por outro, o latim não tinha um equivalente para a noção de espírito, de onde a quebra do equilíbrio harmonioso da tripartição, dando progressivamente lugar a uma oposição: “alma e corpo” oscilando muitas vezes, no decorrer da História, entre desabono e desprezo puro e simples por este último e, para efeito de compensação, negação e desprezo nos nossos dias, pela alma, colocando-a simplesmente a serviço do corpo e do “material”.
 
Mais adiante em seu artigo, Georges Dumézil segue nos propondo o seguinte: “Assim também a Índia, com a instabilidade de representação e de formulação que lhe é característica, compõe a Alma – ou, pelo menos, o envoltório da Alma – dos três mesmos Guna que compõem a sociedade e o Universo: essas ‘qualidades’ que foram primeiramente luz, crepúsculo e trevas – Sattva, Rajas e Tamas – seja por suas presenças isoladas, seja por suas combinações, constituem não só os indivíduos, mas também os Estados: algumas vezes os sentidos da lei moral, da paixão, do interesse – Dharma, Kâma, Artha – se unem numa tríade equivalente à das Guna, e seus equilíbrios, louváveis ou censuráveis, definem os tipos de homens; outras vezes, seguindo um esquema bem indiano, é o conhecimento sossegado, a atividade inquieta e a ignorância fonte dos erros que disputam entre si nosso templo efêmero”.


Isso se encontra ilustrado de forma apropriada no Ayurveda, que percebe o Ser humano na forma de três envoltórios: o do sustento/alimento (corpo de carne), correspondente ao ventre e ao baixo-ventre; o da respiração, centrado no coração, responsável pelo metabolismo da água (plasma, sangue), correspondendo ao peito, ao coração e aos pulmões; e o do envoltório mental (pensamentos, emoções, cinco sentidos), correspondendo à cabeça. A longa citação de Georges Dumèzil, que dedicou grande parte de sua vida ao estudo e comprovação das raízes indo-européias de nossas culturas ocidentais, nos mostra a que ponto a tripartição do funcionamento, não só do ser humano, mas também da sociedade e até do “Cosmos”, vem de um esquema universalmente reconhecido e aceito como o fundamento do próprio surgimento e da evolução da vida no universo.
 
Segundo outras fontes do mesmo conhecimento tradicional, o ser humano pode também lançar sobre o universo três tipos de olhar: um olhar corporal, um olhar racional e um olhar espiritual. O olho físico dá acesso às belezas terrenas, o olho da razão abre as portas da consciência de si mesmo, e o olho da alma permite pressentir a beleza suprema. Mas Angelus Silesius nos diz ainda: “a alma tem dois olhos: um observa o tempo (nosso ‘aqui e agora’ do mundo encarnado) e o outro contempla a eternidade”. No nível de nosso olhar sobre a vida e sobre o mundo, é preciso notar que cada uma das três ordens assim desprendidas contém implicitamente as três modalidades de percepção e de interpretação: intelectual e racional, sensível e idealista, pragmática e instintiva.


Então, voltando à “Árvore Sefirótica”, existe a cabeça, o peito e o ventre dentro de Atsiluth, dentro de Br’iah assim como dentro de Yetsirah e Asiah. Então, não aprendemos da mesma forma a ordem da cabeça e seus funcionamentos e criações, pois isso vai depender de o nosso nível de percepção e de leitura da realidade estar mais num plano intelectual, espiritual, ou mais social, emocional, ou até mesmo mais instintivo, impulsivo. O mesmo se aplica à ordem do coração e seus funcionamentos e criações assim como à ordem do ventre e do baixo-ventre.

O profundo valor simbólico que atribuímos às letras, às palavras, aos conceitos que utilizamos para definir cada uma dessas ordens, será bem diferente dependendo da consciência com que as abordamos. Com muita cautela com relação a qualquer reducionismo intempestivo do pensamento, podemos, no entanto, destacar este ponto de grande importância em nossa relação com o mundo, pois é necessário, antes de tudo, saber em que plano nos situamos e admitir, humildemente, que existe, além do nosso próprio filtro de leitura, outras formas de apreender as coisas do mundo e da vida, todas elas igualmente legítimas.
 
Aqui, um trabalho de “conhecimento de si-mesmo” nos leva a colocar o dedo na ferida do que somos bem no fundo de nós-mesmos e o que desejamos ser: seja um “Deus”impessoal e desligado das contingências materiais do mundo, seja um “homem” plenamente encarnado e responsável porque “conhecedor” – ou, pelo menos, procurando “conhecer”–, seja um “animal” insaciável, reclamando e se apropriando da sua “fatia do bolo”.



O jogo de interações entre essas três facetas da realidade individual é, evidentemente, bem sutil, mas nem por isso isento de conseqüências maiores para a elaboração do mundo no qual desejamos viver e que desejamos deixar para as futuras gerações. Vemos por isso que, longe de considerações morais que regulamentam de modo dogmático e arbitrário um “viver junto”, trata-se acima de tudo de evidenciar aqui uma “organização” inscrita desde a noite dos tempos na própria “matéria” da vida, em sua “medula substantífica” segundo a linguagem alquímica tão cara a Rebelais.
 
Para concluir, não vamos imaginar que este esquema em tríade da estrutura e funcionamento do ser humano, das sociedades e até do universo faz parte de um passado longínquo, de um pensamento um tanto confuso e hermético, e que nosso radiante século 21 pode dispensar tal conhecimento. No nosso mundo bem atual do “ensino público”, encontramos de fato na rubrica “Objetivos educacionais” o seguinte: “As três taxonomias simplificadas, ou seja, na ‘exposição à experiência educativa’, o esquema de resposta e de apropriação desta experiência, por aquele a ela submetido, têm três eixos principais”; lembra-nos então que no nível do comportamento do indivíduo, esses três domínios estão às vezes, e mesmo freqüentemente, intimamente ligados (vide esquema na página 38). Mas será que não podemos aplicar nossa tripartição (cabeça – peito – ventre e baixoventre), a este esquema, e perceber que a “cabeça” corresponde perfeitamente ao “domínio cognitivo (saber), instrução”; que o “coração” ressoa harmoniosamente com o “domínio afetivo (saber ser), educação”, e que finalmente o corpo – “ventre e baixo-ventre” – se encaixa perfeitamente no que nos é proposto como “domínio sensório-motor (saber fazer), formação”? Isso nos revela que, longe de estar perdida, um pouco da Sabedoria dos Antigos ressurge de uma situação aparentemente caótica de nossas culturas contemporâneas.

Fonte: Artigo publicado na revista "O Rosacruz" , Verão de 2009

*Disponível também em pdf no site da AMORC: http://www.amorc.org.br/divulgacao.htm

*Imagens retiradas do próprio artigo. Clique sobre as mesmas para vê-las em tamanho maior.

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